"O amor é grande e cabe nesta janela sobre o mar. O mar é grande e cabe na cama e no colchão de amar. O amor é grande e cabe no breve espaço de beijar" - Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Calvário dos Aflitos


A noite caía quando, a passos largos, Vítor enfrentava a íngreme Ladeira dos Aflitos. Seu destino seria o ponto mais alto do morro batizado com o mesmo nome, que, além mirante natural esculpido bem no centro do Vale do Ribeira, era o lugar onde (garantia a sabedoria popular) Deus reclinava-se em sua misericórdia para ouvir o pranto do aflito.
O céu em nada prometia uma bela vista do vale: nuvens cortadas por riscos reluzentes e o forte sibilar do vento que quebrava os ramos do caminho exibiam um espetáculo à parte e, como bom ladrão, roubavam a cena.
_ Senhor!
O grito de desabafo rompe o balé da tempestade que se aproxima e ecoa solitário no cimo dos aflitos. Sem resposta, Vítor repete o gesto, e repete, e repete. A densa chuva o envolve numa fria cortina translúcida e o rapaz prossegue em sua ladainha, agora já distorcida entre soluços e lágrimas. Até que cai por terra, de rosto na lama, só ficando o pranto, o pranto dos aflitos. Suspira. Silêncio.
Sob um sol ofuscante, Vítor esforça-se para abrir os olhos e erguer-se. Lembra-se, como em sonho, da agonia que vivera na noite anterior e de sua ousadia em exigir a atenção de Deus. De pé e de olhos bem abertos, ele olha para o lugar onde pisa – terra batida – e, atônito, levanta o olhar e percebe a terra espalhando-se num imenso mar vermelho até tocar o horizonte. Apesar da imensidão, Vítor não podia dar nenhum passo: por toda parte, minas, explosivos e armadilhas o cercavam.
O pranto mais uma vez deformou-lhe a face, impedindo-o de ver que bem à sua direita, a alguns metros de distância, estava a bicicleta com a qual sonhara durante toda a infância, mas não pôde comprá-la. Lá ao fundo, o imponente prédio da companhia de seguros onde almejara um estágio, mas não obtivera sucesso. O carro, o tênis, o vídeo-game, o troféu de basquete, tudo que desejara na vida, mas por infortúnios não conquistara, foram semeados nessa infinita messe em meio a armadilhas mortais.
Enxugando as lágrimas, o rapaz gira sobre seu eixo vislumbrando as figuras que, em diferentes fases de sua tão jovem vida, nortearam seus pensamentos. Tentava ainda compreender o que se passava, mas um calafrio cortou-lhe a espinha, emudeceu sua razão e fixou seus olhos em Sara. Ex-namorada. Motivo da sua subida insana ao pé do ouvido de Deus. Imóvel. Muito perto. Distância que um abraço tímido venceria, não fosse um tênue arame que serpenteava entre os dois e conectava-se a um explosivo.
_ Por quê?
O grito estremece a alma de Vítor e ressuscita o desespero que adormecia em seu seio. Imóvel. Mas não aparentava que permaneceria assim. Sua mente já caíra em tentação. Bastava um único passo e, finalmente, viveria algo que tanto desejava.
Sua decisão foi adiada por conta de uma voz feminina que clamava seu nome e obrigou-o a olhar para trás. Havia um estreito e longo caminho de luz que transpassava a seara e encontrava-se com o infinito. Por ele aproximava-se uma mulher, transfigurada, seu rosto e suas vestes tanto brilhavam quanto o sol de meio-dia.
_ Filho, esse é o caminho.
Vítor deixou-se inebriar por aquele dilúvio de luz e viu que era bom.
_ Como assim? Aqui está tudo o que mais quero! Você tem de me ajudar a tirar Sara das armadilhas, então construiremos duas tendas...
_ Homem de pouca fé! Tome sua vida, seus objetivos e siga-me.
_ Por esse caminho que não leva a nenhum lugar? Estou aqui, tão perto dos meus sonhos, provavelmente uma oportunidade única! Não posso deixá-la passar.
O brilho se apagou. Quando pôde enxergar com clareza, Vítor avistou a mulher afastando-se lentamente pelo caminho. Triste por ele não ter compreendido que é durante a caminhada, durante o esforço de se vencer a longa jornada que o milagre acontece.
Vítor voltou-se para Sara, e para o arame, e para o mundo de desejos não realizados. Maquina uma forma de desarmar as bombas, desmontar as armadilhas, desativar as minas. Até agora Vítor não saiu do lugar. Imóvel.

Sintaxe


Amar-te é literatura
É verso livre
sem metrificação
É aliteração
se embolando e enrolando e entoando
uma cantiga ao edredon

Estar contigo,
na norma culta padrão,
é abandonar a cacofonia
do infinitivo impessoal
para vivermos substantivo
comum-de-dois

É flexionar em número
Extrapolar o superlativo
É misturar repetição e gradação
para tentar dizer que você é
dez, dez centos, cem mil dezenas

E, se a distância entre nós,
essa vírgula que separa
sujeito e verbo,
subordina a alma à dor,
indiferente a tudo isso,
a regência exigida por Amar
liga-me a ti diretamente,
apesar dessa chata preposição
E fico tranqüilo,
pois estou em concordância com a premissa:
mesmo quando o sujeito está oculto,
sabemos quem ele é

Se penso no futuro do presente,
lá você está
aglutinada a mim,
pronome oblíquo átono
Portanto, sobre mim e ti,
incontestavelmente,
inegavelmente,
felizmente,
somos caso de mesóclise obrigatória.

Meu mundo


É..., João agora era normal. Falávamos a mesma língua.

João era muito quieto. Chegava a ser estranho. Não gostava de dançar, beber, fumar, nem fazer qualquer outra coisa que nós fazíamos. Uma hora e meia de conversa e a única palavra que balbuciou, quase por obrigação, foi um bom-dia. Com o olhar fixo
no horizonte, ele parecia enxergar algo além da nossa compreensão.
Não me esqueço do dia em que ele levantou-se de repente da roda de amigos, sempre com seu olhar para o nada, atravessou toda a praça a passos lentos, depois voltou e sentou-se no mesmo lugar.

É..., João realmente vivia em outro mundo. Não entendia a nossa língua e nós não entendíamos a dele. Em sua estante, pilhas e pilhas de manuscritos. Poesias e mais poesias, todas mergulhadas num mundo imaginário. Ao ler algumas, me senti de cabeça para baixo, totalmente desnorteado com a abstração que saía de João.
A situação agravou-se quando João começou a andar de costas. Todos comentavam que já era hora de internar o pobre coitado. João, literalmente, deu as costas para o mundo.
Depois de muita repreensão de seus pais e zombaria dos colegas, João resolveu encarar o mundo de frente. Passou a sair conosco, virar noites inteiras à base de álcool e nicotina, dançar até as pernas não agüentarem mais. Quem diria que João tinha tanto jeito com as mulheres? Em noites inspiradas, ele chegava a sair com três!

É..., João agora era normal. Falávamos a mesma língua. Seus novos poemas, recitados no auge das madrugadas, eram facilmente entendidos e arrancavam palmas de todos.

Só não entendi o que João quis dizer quando se trancou no banheiro por toda a manhã. Tivemos que arrombar a porta. João estava sentado no chão com uma seringa fincada no braço, seu rosto pálido e seus olhos fixos no horizonte. Parecia um cadáver. Era um cadáver.

Talvez teria sido melhor João não ter abandonado o seu mundo para viver o nosso. Seria diferente de todos, mas igual a ele mesmo.

Circo

No fim da noite
Ele ali,
Mas não no mesmo lugar,
Entre amigos
Ambiente desproporcional
À sua tristeza.
Tentava enganar.
Um palhaço
Com lágrimas nos olhos.
Talvez porque foi enganado.
Uma palhaça
Com um sorriso nos lábios.
Sua vida era um circo,
Tinha um leão
Chamado paixão,
Uma trapezista que não se cansa
Chamada esperança,
Um canhão sem mira
Chamado ira,
Tinha um palhaço sem maldade
Chamado felicidade.
Até aparecer uma domadora
Que soltou o leão.
O leão matou o palhaço
E a trapezista fugiu.
Ainda insatisfeita
A domadora acendeu o canhão
E quando estourou
Ele jogou-se na rodovia.
Nesse momento
Ele foi segurado.
Sentiu a mão de Deus
Puxando sua camisa
E impedindo sua morte.
A alma do palhaço
Às vezes se manifesta,
Mas a trapezista nunca mais voltou.

Uma rosa vermelha pro meu amor


A noite é mais fria nos bancos da praça. O Professor lê, com dificuldades, as notícias de seu cobertor. Piveti, Boleba e Rudim ouvem atentamente o Professor. Aquelas manchetes são para eles uma história de ninar.

_ Enchente deixa cento e cinqüenta famílias desabrigadas; morre mais uma pessoa vítima do tráfico; acidente paralisa o centro da cidade. – Nas manchetes mais trágicas, Professor usa um tom de voz sombrio, mas os ouvintes não se impressionam, e adormecem embalados pelas notícias do ano passado.

O Professor faz pose de vidente e começa:
_ Horóscopo! – Os outros três levantam-se rapidamente – Hoje será um ótimo dia para o amor e para fazer novas amizades. Seja simpático e cordial.
Boleba deita-se novamente. Ele esperava que o Professor dissesse que tudo aquilo iria acabar. Que quando acordassem a vida teria dado uma reviravolta.

Por influência de Boleba, Rudim deitou-se também. Piveti não acompanhou os dois colegas, parecia não acreditar. Então, pediu que o Professor repetisse:
_ Hoje será um ótimo dia para o amor e para fazer novas amizades.Piveti tinha feito uma nova amizade naquele dia. Conheceu Dona Judite, que lhe deu o almoço. Piveti também conheceu o cupido, que lhe deu uma flechada certeira.
“Qual o nome dela? Como ela é?”- Perguntavam os outros. O Professor rolava de tanto rir. Piveti nem percebera a zombaria, seus olhos brilhavam, seu pensamento viajava. Não parava de pensar em Amanda, filha de Dona Judite, a criatura mais bela que Piveti já vira.

Piveti andava nas nuvens. Esqueceu da galera, dos roubos, da cola de sapateiro. Começou a olhar o mundo com outros olhos. Observava as pessoas que atravessavam a praça e sentia os medos e preocupações de cada uma.
Descobriu como o jardim da praça era lindo. Foi num canteiro da praça e colheu a rosa mais viva. Com muita pressa, Piveti dirigiu-se para a casa de Amanda. Parou no portão, avistou, através das grades, a janela aberta e não viu ninguém. Não teve coragem de chamar, então, sentou no meio-fio esperando que Amanda aparecesse.

Passaram-se horas, e o cinza foi tomando conta do céu. Quem trafegava naquela rua admirava-se com a imagem de um menino maltrapilho acariciando uma rosa.O céu desabou em águas e raios. Piveti, imóvel com a rosa na mão, desmanchava-se em lágrimas. Lágrimas que perdiam-se na imensidão das águas da chuva.
A rosa, aos poucos, perdia as pétalas. A cada pétala que caía, Piveti se martirizava apertando o caule e ferindo a mão.
Ao cair a última pétala, Piveti deixou escapar o caule, que se foi rua abaixo com a enxurrada. Neste momento Amanda chegou da janela e, com movimentos delicados, Piveti levantou a mão, vermelha de sangue, no formato de uma rosa.