"O amor é grande e cabe nesta janela sobre o mar. O mar é grande e cabe na cama e no colchão de amar. O amor é grande e cabe no breve espaço de beijar" - Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Meu mundo


É..., João agora era normal. Falávamos a mesma língua.

João era muito quieto. Chegava a ser estranho. Não gostava de dançar, beber, fumar, nem fazer qualquer outra coisa que nós fazíamos. Uma hora e meia de conversa e a única palavra que balbuciou, quase por obrigação, foi um bom-dia. Com o olhar fixo
no horizonte, ele parecia enxergar algo além da nossa compreensão.
Não me esqueço do dia em que ele levantou-se de repente da roda de amigos, sempre com seu olhar para o nada, atravessou toda a praça a passos lentos, depois voltou e sentou-se no mesmo lugar.

É..., João realmente vivia em outro mundo. Não entendia a nossa língua e nós não entendíamos a dele. Em sua estante, pilhas e pilhas de manuscritos. Poesias e mais poesias, todas mergulhadas num mundo imaginário. Ao ler algumas, me senti de cabeça para baixo, totalmente desnorteado com a abstração que saía de João.
A situação agravou-se quando João começou a andar de costas. Todos comentavam que já era hora de internar o pobre coitado. João, literalmente, deu as costas para o mundo.
Depois de muita repreensão de seus pais e zombaria dos colegas, João resolveu encarar o mundo de frente. Passou a sair conosco, virar noites inteiras à base de álcool e nicotina, dançar até as pernas não agüentarem mais. Quem diria que João tinha tanto jeito com as mulheres? Em noites inspiradas, ele chegava a sair com três!

É..., João agora era normal. Falávamos a mesma língua. Seus novos poemas, recitados no auge das madrugadas, eram facilmente entendidos e arrancavam palmas de todos.

Só não entendi o que João quis dizer quando se trancou no banheiro por toda a manhã. Tivemos que arrombar a porta. João estava sentado no chão com uma seringa fincada no braço, seu rosto pálido e seus olhos fixos no horizonte. Parecia um cadáver. Era um cadáver.

Talvez teria sido melhor João não ter abandonado o seu mundo para viver o nosso. Seria diferente de todos, mas igual a ele mesmo.

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