
A noite caía quando, a passos largos, Vítor enfrentava a íngreme Ladeira dos Aflitos. Seu destino seria o ponto mais alto do morro batizado com o mesmo nome, que, além mirante natural esculpido bem no centro do Vale do Ribeira, era o lugar onde (garantia a sabedoria popular) Deus reclinava-se em sua misericórdia para ouvir o pranto do aflito.
O céu em nada prometia uma bela vista do vale: nuvens cortadas por riscos reluzentes e o forte sibilar do vento que quebrava os ramos do caminho exibiam um espetáculo à parte e, como bom ladrão, roubavam a cena.
_ Senhor!
O grito de desabafo rompe o balé da tempestade que se aproxima e ecoa solitário no cimo dos aflitos. Sem resposta, Vítor repete o gesto, e repete, e repete. A densa chuva o envolve numa fria cortina translúcida e o rapaz prossegue em sua ladainha, agora já distorcida entre soluços e lágrimas. Até que cai por terra, de rosto na lama, só ficando o pranto, o pranto dos aflitos. Suspira. Silêncio.
Sob um sol ofuscante, Vítor esforça-se para abrir os olhos e erguer-se. Lembra-se, como em sonho, da agonia que vivera na noite anterior e de sua ousadia em exigir a atenção de Deus. De pé e de olhos bem abertos, ele olha para o lugar onde pisa – terra batida – e, atônito, levanta o olhar e percebe a terra espalhando-se num imenso mar vermelho até tocar o horizonte. Apesar da imensidão, Vítor não podia dar nenhum passo: por toda parte, minas, explosivos e armadilhas o cercavam.
O pranto mais uma vez deformou-lhe a face, impedindo-o de ver que bem à sua direita, a alguns metros de distância, estava a bicicleta com a qual sonhara durante toda a infância, mas não pôde comprá-la. Lá ao fundo, o imponente prédio da companhia de seguros onde almejara um estágio, mas não obtivera sucesso. O carro, o tênis, o vídeo-game, o troféu de basquete, tudo que desejara na vida, mas por infortúnios não conquistara, foram semeados nessa infinita messe em meio a armadilhas mortais.
Enxugando as lágrimas, o rapaz gira sobre seu eixo vislumbrando as figuras que, em diferentes fases de sua tão jovem vida, nortearam seus pensamentos. Tentava ainda compreender o que se passava, mas um calafrio cortou-lhe a espinha, emudeceu sua razão e fixou seus olhos em Sara. Ex-namorada. Motivo da sua subida insana ao pé do ouvido de Deus. Imóvel. Muito perto. Distância que um abraço tímido venceria, não fosse um tênue arame que serpenteava entre os dois e conectava-se a um explosivo.
_ Por quê?
O grito estremece a alma de Vítor e ressuscita o desespero que adormecia em seu seio. Imóvel. Mas não aparentava que permaneceria assim. Sua mente já caíra em tentação. Bastava um único passo e, finalmente, viveria algo que tanto desejava.
Sua decisão foi adiada por conta de uma voz feminina que clamava seu nome e obrigou-o a olhar para trás. Havia um estreito e longo caminho de luz que transpassava a seara e encontrava-se com o infinito. Por ele aproximava-se uma mulher, transfigurada, seu rosto e suas vestes tanto brilhavam quanto o sol de meio-dia.
_ Filho, esse é o caminho.
Vítor deixou-se inebriar por aquele dilúvio de luz e viu que era bom.
_ Como assim? Aqui está tudo o que mais quero! Você tem de me ajudar a tirar Sara das armadilhas, então construiremos duas tendas...
_ Homem de pouca fé! Tome sua vida, seus objetivos e siga-me.
_ Por esse caminho que não leva a nenhum lugar? Estou aqui, tão perto dos meus sonhos, provavelmente uma oportunidade única! Não posso deixá-la passar.
O brilho se apagou. Quando pôde enxergar com clareza, Vítor avistou a mulher afastando-se lentamente pelo caminho. Triste por ele não ter compreendido que é durante a caminhada, durante o esforço de se vencer a longa jornada que o milagre acontece.
Vítor voltou-se para Sara, e para o arame, e para o mundo de desejos não realizados. Maquina uma forma de desarmar as bombas, desmontar as armadilhas, desativar as minas. Até agora Vítor não saiu do lugar. Imóvel.
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